next up previous contents
Next: A Álgebra dos Grupos Up: Bons Antecedentes Algébricos Previous: Grupos Clássicos: Definições

A Geometria dos Grupos Clássicos

Os grupos clássicos podem ser submetidos à dissecação por uma variedade de técnicas. De fato, eles intervêem em quase qualquer área da matemática. Nesta seção e na próxima são colocados os pontos de vista com os quais um geômetra e um algebrista os estudam.

Um geômetra, admirando grupos clássicos, fica inebriado como estes grupos dependem suavemente das coordenadas-entradas das matrizes, e como as operações algébricas envolvidas, a multiplicação e a inversão, são operações suaves. De fato um geômetra, ao ver mencionada a palavra corpo, só se lembra dos reais e dos complexos, e então reconhece estes grupos como variedades diferenciáveis em que as operações algébricas envolvidas são suaves. Na verdade o que o fascina é o fato de grupos clássicos serem objetos da categoria Diff (ver apêndice B), de fato objetos de Hopf desta categoria (ver (A.6)). A denominação consagrada é, claro, indicar que grupos clássicos são grupos de Lie.

Rastreando definições, um grupo de Lie é um grupo, objeto de Grp, que é uma variedade diferenciável, objeto de Diff, tal que a multiplicação e a inversão
\begin{align}\mu:G\times G&\longrightarrow G\notag\\
(g,g')&\mapsto gg'\notag\\
\iota:G&\longrightarrow G\notag\\
g&\mapsto g^{-1}\notag
\end{align}
são morfismos em Diff.

Muita coisa é necessária para tornar esta definição possível: em primeiro lugar, o produto cartesiano, que é o produto categórico em Conj, pode ser dotado de uma estrutura de produto em Grp (isto é consequência de ter o funtor de esquecimento $\mathcal{ E}:{\bf Grp}\rightarrow {\bf Conj}$ um adjunto à esquerda, dado pela estruturação livre; ver (A.4)), e também pode ser dotado de uma estrutura de produto em Diff. Isto permite que o morfismo em Grp dado pela multiplicação $\mu:G\times G\rightarrow G$ seja morfismo em Diff. A aplicação do funtor derivada $D:{\bf Diff}
\rightarrow {\bf Diff}$ ao morfismo $\mu$ resulta num morfismo em Diff $D(\mu):D(G\times G)\rightarrow D(G)$; em particular, derivando na origem $(I,I)\in G\times G$ resulta numa aplicação linear entre os espaços tangentes ((B.5))

\begin{displaymath}D(\mu)_{(I,I)}:D(G\times G)_{(I,I)}
\longrightarrow D(G)_I.\end{displaymath}

Uma álgebra de Lie $\mathcal{ A}$ sobre um corpo k é um espaço vetorial sobre k dotado de uma operação bilinear

\begin{displaymath}[\bullet,\bullet]:
A\times A\longrightarrow A\end{displaymath}

que satisfaz [a,a]=0 para qualquer $a\in A$ e a identidade de Jacobi

[[a,b],c]+ [[b,c],a]+[[c,a],b]=0. (1.2.1)

Dado um grupo de Lie G, a estrutura de grupo em G dota o espaço tangente na identidade D(G)I da estrutura de uma álgebra de Lie (ver (B.5)). Esta estruturação se manifesta de várias maneiras: por exemplo, derivando o morfismo $\mu$ de multiplicação. Para calcular esta derivada na identidade $I\in G$ toma-se uma parametrização local (U,V,h) onde U é aberto em ${\bf R}^n$; sem perda de generalidade pode ser exigido $0\in U$ com h(0)=I, a identidade em G. Então $h\times h:U\times U\rightarrow
V\times V$ é parametrização local de $G\times G$ em torno da identidade (I,I) de $G\times G$. A parametrização faz recair o cálculo da derivada de $\mu$ em (I,I) no cálculo da derivada de $f:=h^{-1}\circ
\mu\circ (h\times h):U\times U\rightarrow
U$, onde

\begin{displaymath}U\times U
\stackrel {h\times h}{\longrightarrow}
G\times G
...
...mu}
{\longrightarrow}G
\stackrel {h^{-1}}{\longrightarrow} U,\end{displaymath}

é definido em uma vizinhança apropriada de (0,0). Expandindo a série de Taylor de f em torno de (0,0), e usando $E_1,E_2\in {\bf R}^n$, resulta em

\begin{displaymath}f(E_1,E_2)=E_1+E_2+B(E_1,E_2)+
\cdots,\end{displaymath}

onde $B(\bullet, \bullet)$ é uma aplicação bilinear e as reticências indicam termos de ordem superior. Com esta forma bilinear define-se

[E1,E2]=B(E1,E2)-B(E2,E1).

A associatividade de $\mu$ implica f(f(E1,E2), E3)=f(E1,f(E2,E3)), que levada à série de Taylor implica

B(B(E1,E2),E3)=B(E1,B(E2,E3)).

Daí segue que
\begin{align}[[E_1&,E_2],E_3]=\notag\\
&B(B(E_1,E_2)E_3)-B(E_3,
B(E_1,E_2))+B(E_3,B(E_2,E_1))-B(B(E_2,E_1),E_3).\notag
\end{align}
Somando as equações correspondentes para os termos [[E2,E3],E1] e [[E3,E1],E2] há cancelamento completo de todos os termos à direita, e logo é satisfeita a identidade de Jacobi

[[E1,E2],E3]+[[E2,E3],E1]+ [[E3,E1],E2]=0.

Assim, identificando Ei com o vetor tangente de $t\mapsto tE_i$, o espaço tangente D(G)I de um grupo de Lie na identidade tem a estrutura de uma álgebra de Lie. Esta estrutura se manifestará sempre que a estrutura diferencial (do grupo como objeto de Diff) e algébrica (dele como objeto de Grp) forem usadas em conjunto. Por exemplo, para qualquer variedade diferenciável M, objeto de Diff, o espaço de campos vetoriais (ou, equivalentemente, de derivações da álgebra ${\it Hom}_{\bf Diff}(M,{\bf R})$; ver (B.5)),

\begin{displaymath}Vect(M)\simeq
Der({\it Hom}_{\bf Diff}(M,{\bf R}))
\tag{\bf 1.2.2}
\end{displaymath} (1.2.2)

tem naturalmente a estrutura de uma álgebra de Lie (em geral de dimensão infinita). Esta estrutura, presente em qualquer variedade diferenciável, não é a estrutura relevante se M=G for um grupo de Lie: neste caso observa-se que G age em Vect(G) da seguinte maneira. A multiplicação à esquerda

\begin{eqnarray*}\mu_g:G&\longrightarrow G\\
g'&\mapsto gg'
\end{eqnarray*}


é isomorfismo em Diff (não sendo sequer morfismo em Grp), e se $\chi\in Vect(G)$ então
\begin{align}\chi^{\mu_g}:=D(\mu_g)(\chi\circ \mu_{g^{-1}}):G
&\rightarrow D(G)\notag\\
g'&\mapsto D(\mu_g)(\chi(g^{-1}g'))\in D(G)_{g'}
\notag
\end{align}
é um campo vetorial em Vect(G). Isto define uma ação de G em Vect(G), e um campo $\chi\in Vect(G)$ é dito invariante à esquerda se $\chi^{\mu_g}=
\chi$. O subconjunto GVect(G) de campos invariantes à esquerda é uma sub-álgebra de Lie de Vect(G); esta sub-álgebra GVect(G) é isomorfa à álgebra de Lie de G definida como o espaço tangente na identidade D(G)I com a operação definida como acima, através do isomorfismo $\chi\mapsto \chi(1)$. Visto na encarnação de derivações (1.2.2), um campo $\chi$ encarado como uma derivação de ${\it Hom}_{\bf Diff}(M,{\bf R})$ é invariante à esquerda se comutar com a transformação linear
\begin{align}\mu_g:{\it Hom}_{\bf Diff}(M,{\bf R})
&\longrightarrow {\it Hom}_{...
...g\\
&\hspace{0.75in}m\mapsto
f(\mu_{g^{-1}}(m)=f(g^{-1}m).\notag
\end{align}
Além destas duas aparições da álgebra de Lie de um grupo de Lie G, é necessário ao que segue considerar ainda uma terceira, obtida através da ação de G dada por conjugação:
\begin{align}A:G&\longrightarrow {\it Hom}_{\bf Grp}(G,G)\notag\\
g&\mapsto A(g):G\rightarrow G\notag\\
&\hspace{0.75in}g'\mapsto gg'g^{-1}.\notag
\end{align}
O morfismo A(g) é isomorfismo em Grp e em Diff, sendo composta de translações à direita e à esquerda. Considerando-o como isomorfismo em Diff podemos tomar sua derivada na identidade I de G: esta derivada se denota por

\begin{displaymath}Ad(g):=D(A(g))_I:D(G)_I\longrightarrow D(G)_I,\end{displaymath}

e $g\mapsto Ad(g)$ define uma ação de G em ${\it Aut}_k(D(G)_I,D(G)_I)$ (isto é, automorfismos de D(G)I como espaço vetorial sobre k). Como ${\it Aut}_k(D(G)_I,D(G)_I)$ tem uma estrutura de grupo de Lie (ver exemplo 1. abaixo), é possível tomar a derivada de $g\mapsto Ad(g)$ na identidade I, obtendo uma aplicação de D(G)I no espaço tangente de ${\it Aut}_k(D(G)_I,D(G)_I)$ em sua identidade $I:D(G)_I\rightarrow D(G)_I$. Como ${\it Aut}_k(D(G)_I,D(G)_I)$ (sendo imagem inversa do aberto $k\setminus \{0\}$ pela função contínua $\det$) é aberto em ${\it Hom}_k(D(G)_I,D(G)_I)$, este espaço tangente é simplesmente ${\it Hom}_k(D(G)_I,D(G)_I)$, e a derivada D(Ad)I define uma ação de álgebras de Lie, denotada por
\begin{align}ad:D(G)_I&\longrightarrow {\it Hom}_k(D(G)_I,D(G)_I)\notag\\
E&\mapsto ad(E):D(G)_I\rightarrow D(G)_I.\notag
\end{align}
A operação
\begin{align}D(G)_I\times D(G)_I&\longrightarrow
D(G)_Inotag\\
(E,E')&\mapsto [E,E']:= ad(E)(E')\notag
\end{align}
é uma (terceira) forma de dotar D(G)I de uma estrutura de álgebra de Lie. Assim, com um embarras de richesses, foi indicado o


Teorema de Estruturação do Espaço Tangente na Identidade como álgebra de Lie. Se G for um grupo de Lie então o espaço tangente D(G)I na identidade tem naturalmente a estrutura de uma álgebra de Lie.


O que falta para ser visto da prova do teorema depende de como se interprete a palavra ``naturalmente''. As três maneiras de definir esta estrutura devem servir como uma justificativa da qualificação ``natural'', mas então deve ser provado que estas três maneiras coincidem; isto não é difícil: a representação adjunta $ad:D(G)_I\rightarrow {\it Hom}_k
(D(G)_I,D(G)_I)$, que foi a última forma de apresentar a estrutura, é calculada pela série de Taylor, como na primeira definição. Em cada uma das formas de apresentar foram omitidos detalhes (como a prova da identidade de Jacobi), que são rotineiros.


O Teorema acima define um funtor da categoria de GrpLie de grupos de Lie para a categoria AlgLie de álgebras de Lie:

\begin{displaymath}\mathcal{ L}:{\bf GrpLie}\longrightarrow {\bf
AlgLie}.\end{displaymath}


Exemplos e Exercícios


1. A álgebra de Lie de $Gl_n({\bf R})$. O grupo de Lie $Gl_n({\bf R})$ é o grupo de transformações lineares inversíveis de ${\bf R}^n$; o cálculo que se segue se aplica para o grupo de transformações lineares de qualquer espaço vetorial V de dimensão finita sobre k.

Para tomar uma parametrização local em torno da identidade $I\in Gl_n({\bf R})$ satisfazendo as condições descritas acima basta fazer

\begin{eqnarray*}h:U\subset {\bf R}^{n^2}
&\longrightarrow Gl_n({\bf R})\\
(c_{ij})_{i,j=1,\ldots ,n}&\mapsto I+(c_{ij}),
\end{eqnarray*}


com (cij) matriz $n\times n$ tomada em uma vizinhança apropriada U da origem em ${\bf R}^{n^2}$. A expansão de Taylor de $f=h^{-1}\circ \mu
\circ (h\times h)$ é então simplesmente

f(A,B)=A+B+(AB-BA),

onde A,B estão no espaço $\mathcal{ M}_{n\times n}({\bf R})$ de matrizes $n\times n$ com coeficientes reais. Assim, a álgebra de Lie de $Gl_n({\bf R})$ é o espaço $\mathcal{ M}_{n\times n}({\bf R})$ com a operação dada por [A,B]=AB-BA. Esta álgebra é denotada por $gl_n(
{\bf R})$.


2. O caso de $Sl_2({\bf R})$. Um cálculo análogo pode ser feito para $Sl_2({\bf R})$ tomando a parametrização em torno de $I\in Sl_2({\bf R})$ dada por

\begin{eqnarray*}h:U\subset {\bf R}^3
&\longrightarrow Sl_2({\bf R})\\
\begin...
...end{pmatrix}&\mapsto I+\begin{pmatrix}a&b\\
c&d\end{pmatrix},
\end{eqnarray*}


onde a entrada d é obtida implicitamente. De fato, vale $1=\det(I+\begin{pmatrix}a&b\\
c&d
\end{pmatrix})=1+{\rm tr}\begin{pmatrix}a&b\\
c&d\end{pmatrix}+\det \begin{pmatrix}a&b\\
c&d\end{pmatrix}$, e a condição para o determinante ser 1 requer ${\rm tr}\begin{pmatrix}a&b\\
c&d\end{pmatrix}+\det \begin{pmatrix}a&b\\
c&d\end{pmatrix}=0$. Pelo teorema da função implícita esta condição define implicitamente d como função suave perto da origem.

A álgebra de Lie de $Sl_2({\bf R})$ é dada pela subálgebra de $gl_2({\bf R})$ dada pelas matrizes de traço nulo, como segue de uma aplicação da aplicação exponencial abaixo. Ela é denotada por $sl_2({\bf R})$.


3. A aplicação exponencial. Dado um vetor tangente $E\in D(G)_I$ na álgebra de Lie $\mathcal{ L}(G)$ de um grupo de Lie G, pelo teorema de existência e unicidade de equações diferenciais ordinárias existe uma caminho $p_E:
(-\epsilon,\epsilon)\rightarrow G$ tendo E como vetor tangente. A associação

\begin{displaymath}exp:tE\mapsto p_E(t)\end{displaymath}

define a aplicação exponencial

\begin{displaymath}exp:\mathcal{ L}(G)\rightarrow G.\end{displaymath}

A aplicação exponencial é uma transformação natural $exp: \mathcal{ L}\stackrel{\bullet}
{\longrightarrow} \mathcal{ I}$, onde $\mathcal{ I}$ denota o funtor identidade na categoria de grupos de Lie.

Para $G=Gl_n({\bf R})$ a álgebra de Lie é o conjunto das matrizes $n\times n$ com [A,B]=AB-BA, como visto em 1.. O sistema x'(t)=Ax(t) com condição inicial x(0)=1 tem solução

\begin{displaymath}x(t)=e^{At}=\sum_{k\ge 0}\frac{A^k}{k!}t^k,\end{displaymath}

e logo a aplicação exponencial neste caso é a exponencial usual exp(A)=eA.

Se G é um grupo de Lie e H um subgrupo conexo (ou, pelo menos, com um número de componentes conexas enumerável) então

\begin{displaymath}\mathcal{ L}(H)=\{ X\in \mathcal{ L}(G)
\ \vert\ exp(X)\in H\ \}.\end{displaymath}

Se $A\in G=Gl_n({\bf R})$ é tal que A=MJM-1, onde J é sua forma de Jordan, então

\begin{displaymath}\det(e^A)=\det(e^{MJM^{-1}})=Me^JM^{-1},\end{displaymath}

e logo $\det(e^A)=\prod_ie^{\lambda_i}=e^{{\rm tr}
A}$. Pelo cálculo da exponencial obtido para $G=Gl_n({\bf R})$ e usando o enunciado acima com $H=Sl_n({\bf R})$, segue que a álgebra de Lie $sl_n({\bf R})=\mathcal{ L}(Sl_n({\bf R}))$ de $Sl_n({\bf R})$ é dada pelas matrizes $n\times n$ de traço nulo, conforme anunciado em 2..
next up previous contents
Next: A Álgebra dos Grupos Up: Bons Antecedentes Algébricos Previous: Grupos Clássicos: Definições
Nicolau C. Saldanha
1999-08-10