Por que decidiu fazer faculdade de matemática? Pensava em ser pesquisador quando fez a escolhe? Você já sabia como era a carreira de um pesquisador na área?
No momento de fazer faculdade eu tinha muitas dúvidas, como suponho que deve acontecer com todo o mundo. Eu balançava entre Matemática, Física e Engenharia florestal. Como dá para ver, as duas primeiras têm pouco a ver com a terceira. No último ano antes da faculdade tive dois excelentes professores de Física e de Matemática. Acho que foi meio aleatório. Agora eu penso que há muitas outras coisas interessantes na vida e que poderia ter sido quase qualquer coisa, menos médico e advogado.
Até terminar os estudos de Matemática (na Espanha isso significava Graduação e Mestrado juntos) eu nem sabia o que era pesquisa em Matemática (Espanha nos anos 80 era um lugar bastante periférico), talvez nem imaginasse que isso fosse possível. Eu pensava em ser um bom professor de Ensino Médio. Eu tenho um tio materno muito próximo que era professor, ele largou um trabalho em uma boa firma de construção para ser professor. Sempre falava com entusiasmo do seu trabalho, sempre tentava fazer coisas diferentes e interessantes, e isso deve ter impactado. Sempre gostei de ensinar e ter alunos, para mim era uma excelente perspectiva de vida. E na verdade, gosto muito de ensinar.
Por que escolheu Sistemas Dinâmicos?
Foi um acúmulo de coincidências, como já disse, no mundo em geral e na matemática em particular há muitos temas interessantes, escolher nem sempre é simples nem racional. Depois de terminar a faculdade eu queria mudar de ar e conhecer o mundo, abrir perspectivas. Brasil sempre foi um país mítico, misterioso e cheio de promessas. Naquela época, no fim da faculdade, vários professores da Universidade Complutense de Madrid organizaram um seminário de sistemas dinâmicos. Uma coisa meio inesperada, pois em Madrid quase ninguém se interessava pelo tema naquela época. Um dos professores era fascinado pela matemática soviética em sistemas dinâmicos e estava sempre trazendo artigos incompreensíveis, mas fascinantes. Eu tinha uma amiga da faculdade que estava muito envolvida no tema e me animou a seguir esse caminho. Nesse cenário apareceram dois professores, muito conhecidos na área, Roberto Moriyón y Rafael de la Llave, que ajudaram a levar a ideia adiante. Foi um período totalmente maluco, todos os sábados havia seminários de 9 às 14 horas. Na verdade, eu entendia pouco e aquele seminário estava muito além das minhas capacidades. Na época eu estava fazendo minha dissertação sobre o denominado “fenômeno de Newhouse”, um tema que mais tarde foi central na minha vida matemática. No fim dos seminários, novamente por acaso, Moriyón encontrou a Jacob Palis, quem ofereceu uma bolsa para fazer doutorado no IMPA. O encontro de Moriyón e Palis é uma boa estória que ilustra que com sorte se cruza o mundo e sem sorte não atravessamos a rua. Estamos nos anos 80, com comunicações precárias, talvez inimagináveis nos dias de hoje, Moriyón ligou para Palis pelo telefone para fazer uma pergunta matemática, e Jacob respondeu: "Depois de amanhã me pega no aeroporto de Madri, vamos almoçar e conversar." Deu a coincidência de que Palis estava viajando em 48 horas com passagem por Madrid. O problema matemático também foi resolvido seguido de um grande almoço.
Imaginava (ou considerava) construir uma carreira aqui no Brasil quando veio para cá fazer o doutorado?
Não. Minha vida foi diferente do que eu pensava quando era jovem, e na verdade nem sei se pensava muito no tema. No fim das contas, não adianta muito pensar muito e planejar tudo até os mínimos detalhes. Obviamente é bom pensar, mas sendo cientes das limitações. Eu gosto muito da piada clássica, acho que uma pérola do humor judaico: se quiser fazer rir a deus conte seus planos para ele. Uma coisa foi levando a outra com planejamento quase zero, ou quem sabe até negativo. Mas para mim Brasil foi um país muito generoso que sempre me ofereceu no momento certo o que eu necessitava, sempre com perspectivas interessantes. Nos anos 90 o mundo dos sistemas dinâmicos no Rio de Janeiro era muito empolgante. Novamente, sempre tive muita sorte.
Conte um pouco como foi sua trajetória profissional, quais eram suas expectativas e qual foi a realidade.
Eu tive a imensa sorte de chegar ao IMPA em um momento fabuloso academicamente. Uma época efervescente. Já mencionei isso. Nos anos 85 (quando iniciei meu doutorado) se juntaram muitas coisas: a prova da conjetura da estabilidade por Mañé, toda a teoria de bifurcações homoclínicas onde Palis era peça chave, nessa época Palis também começou a fazer uma série de conjecturas que animaram muito o ambiente, e muitas outras coisas. O ambiente científico era muito intenso, com numerosos visitantes, muitos seminários, muitas conferências, muita interação. Tudo isso foi marcante, e especialmente muito novo para mim.
Eu tive a sorte de coincidir nessa época com Christian Bonatti, Marcelo Viana e Gonzalo Contreras como colegas, todos hoje matemáticos de primeira linha. Com os dois primeiros escrevi artigos e até um livro. Depois conheci muita mais gente que passou pelo Rio de Janeiro, são meus amigos e meus coautores (vou deixar nomes de lado). Foram anos muito legais e muito intensos em muitos aspectos. Mas também foram anos difíceis com hiperinflação e perspectivas cinzentas. Aquela época deixou muitas saudades.
Possivelmente a cronologia estará meio errada. Quando terminei o doutorado tive a sorte de que comecei a colaborar com Jorge Rocha e Raúl Ures, que estavam no IMPA, foi uma colaboração muito boa e divertida. Vale dizer que eu não gosto escrever artigos sozinho, e que gosto muito de toda a vida social e as interações em volta da escrita de um artigo. Nessa época, Maria Jose Pacifico conseguiu uma bolsa de pós-doutorado na UFRJ. Sou muito grato por essa iniciativa. A fase da UFRJ foi um pouco tumultuada, mas muito animada. Decidi sair da UFRJ para ir a UENF em Campos, uma nova universidade estava sendo criada (quando cheguei lá os prédios que eram CIEPS estavam ainda em construção). A proposta parecia muito promissora e legal (fazer uma espécie da Unicamp no estado de Rio de Janeiro). Vale lembrar que naquela empreitada estavam também Carlos Tomei e Iaci Malta, era na época da grande crise da PUC-Rio do início dos 90. Não sei das lembranças deles da época. Realmente, participar da criação de uma universidade do zero é um grande desafio e uma experiência tentadora. Mas a condução de todo o processo foi um desastre para mim. Lembro de reuniões infinitas onde aparecia Darcy Ribeiro, uma figura empolgante e reverenciado por todos, que falava horas a fio sem parar. Depois ele saia e o pessoal mais graúdo ficava pensando que fazer com o discurso. Os pequenos detalhes da universidade não iam adiante. Eles tinham prometido passagens internacionais para pesquisa, quando pedi a minha a resposta foi que não era bem assim, aí peguei o boné. Quando informei disso a Carlos Tomei ele respondeu: boa ideia, eu também vou embora. De lá sai para a PUC-Rio, e estou por lá até hoje. E sempre fui muito bem tratado na minha nova casa.
Finalmente, voltando ao tema das expectativas. Eu não fazia muita ideia da vida acadêmica. Mas ao longo dos anos eu recebi muito mais do que eu esperava e imaginava, tudo foi muito além dos sonhos. Nunca imaginei ministrar uma palestra no ICM, nem ser editor de revistas importantes da área de sistemas dinâmicos, nem ser coordenador de área da CAPES, nem levar prémios. Tudo isso foi além do que eu poderia imaginar. Também minhas colaborações foram além. Assim quando olho para trás fico muito contente e nem acredito. Tive muita sorte. Mas certamente, nada disso teria sido possível sem o apoio da comunidade local, especialmente a de sistemas dinâmicos, e obviamente a ajuda dos meus coautores. E obviamente da PUC-Rio.
O prêmio recebido em 2016 (TWAS) é um grande reconhecimento, como foi recebê-lo? Você esperava ou foi uma surpresa?
Não esperava o prémio. Esses prémios não se esperam, no mínimo no meu caso, são sempre surpresa. Para ganhar o prêmio é necessário ter sorte. Quando Wellington de Melo me disse que ia propor meu nome para o prémio eu fiquei muito contente e emocionado, a nomeação já foi um prémio! Preenchi todo a papelada e esqueci o tema, isso sim agradecendo o apoio de Wellington e da Academia Brasileira de Ciências. Certamente, sem eles não teria ganho o prémio. Mas o melhor dos prémios é poder fazer festas, reunir a gente em volta e festejar muito. Eu deveria ter festejado ainda mais. Meu conselho, especialmente para os jovens, é nunca esquecer de festejar os bons momentos.
Você é o co-fundador do EDAI, do Oktobermat e do Seminário q.t.p. Qual sua motivação e o que você espera desses encontros?
Como disse, meus anos de doutorado no IMPA foram muito importantes com muitos seminários e atividades. Foram marcantes. Eu sou resultado disso. Eu sempre tentei criar em volta um ambiente cientificamente rico, com encontros e discussões. Por isso penso que seminários são grandes catalisadores da vida acadêmica, sendo fundamentais.
Para você, quais foram os momentos mais importantes na sua carreira?
Na verdade, não sei. Dizer os momentos óbvios marcantes (professor titular, membro da ABC, e por aí vai) é um pouco falso, pois tudo isso é resultado de momentos importantes prévios. Quero dizer que foram muito emocionantes as duas conferências de sistemas dinâmicos (uma no IMPAN na Polônia e outra a Escola Brasileira) na ocasião dos meus 60 anos. Estou imensamente grato por estas homenagens que eu nunca esperava. Foram eventos muito legais e animados.
Academicamente, tive muita sorte com o problema de tese de doutorado. O problema inicial foi se ramificando e apareceu em diversas teorias de forma inesperada (mais uma vez, tive muita sorte). Certamente o momento quando comecei a trabalhar com Christian Bonatti (Bourgogne) sobre transitividade robusta foi um momento chave. As parcerias com Jorge Rocha (Porto) de um lado, e com Enrique Pujals (CUNY) e Raúl Ures (SusTech), por outro, foram importantes. Depois tive a sorte de entrar em contato com Lan Wen (Pequim) na China que abriu novos horizontes. Acidentalmente comecei a trabalhar em um congresso com Anton Gorodetski (Irvine) que foi um contato com a escola russa e me abriu novas partes e trouxe novas ideias. Essas ideias foram evoluindo e me levaram a iniciar uma colaboração com Katrin Gelfert (UFRJ) e Michal Rams (Varsóvia), ativa ainda até hoje e fornece um enlace com a escola polonesa. Assim tive a sorte de que quando um tema começava a se esgotar ou a dar sinais de cansaço algum caminho novo aparecia de forma inesperada.
Na lista anterior aparecem quatro ou cinco momentos, e estou esquecendo a muitas pessoas que espero não fiquem ofendidas. Sempre digo que todos meus coautores foram e são importantes e que eu gosto de todos meus artigos, e mais ainda que me diverti muito durante o processo de elaboração. O relevante das parcerias é que elas trouxeram novas ideias e abriram portas que eu nunca teria aberto sozinho. Finalmente, tive muita sorte com meus alunos de doutorado e mestrado. Colaborar com gente mais jovem sempre é uma fonte de energia.
Você tem algum hobbie? Pratica alguma atividades física? O que gosta de fazer nas horas de lazer?
Antigamente corria, mas tive um problema de joelho e parei. Pouco antes da pandemia estava tentando voltar, mas a pandemia parou tudo e agora acho que estou preguiçoso. Gosto de caminhar no mato, mas como tenho vertigem não sou de grandes empreitadas, caminhar já é bastante. Quem sabe um dia destes volto a subir a Pedra Selada em Mauá, que acho é o meu sup em matéria de desafios. Eu gosto muito de cozinhar, dedico bastante tempo ao tema, desde procurar receitas e ideias, até cozinhar. Cozinhar sempre relaxa e é o prelúdio de uma festa, toda comida deve ser um pouco festiva, ou devemos tentar que seja. Gosto de ler, embora ultimamente leia menos do que gostaria, ouvir música clássica e jazz, e ver filmes. Durante a pandemia tenho ficado adito a filmes. As novas plataformas têm me permitido fazer novas descobertas, como as obras de Kore-eda, Zanussi e Mészáros. Como dá para ver, meus passatempos são muito padrão.
Quais são seus próximos passos?
Nas circunstâncias atuais resulta complicado imaginar novos passos. Em qualquer caso, por sorte, não sei quais são os meus próximos passos. Mas como quase sempre a vida terá preparada alguma novidade, que espero seja boa, para mim esse tem sido quase sempre o caso. Talvez o novo passo muito prosaico seja organizar um piquenique de fim de semestre no campus da PUC com os estudantes do meu grupo de estudo de sistemas dinâmicos. Eu ficarei muito feliz com isso.
Falando um pouco mais seriamente, temos a obrigação de assimilar tudo o que tem acontecido nos últimos 18 meses. Para mim estes meses foram muito intensos e ricos em muitos sentidos. Obviamente também muito complicados, mas certamente menos complicados do que para a maioria da população. Todos reclamamos do isolamento, mas durante estes meses foram possíveis algumas atividades que de outra forma nunca teriam acontecido. Eu organizei o seminário internacional Resistência Dinâmica com sessões com até mais de 100 pessoas de todo o mundo, com palestras fabulosas, onde sempre houve muitas discussões e trocas de ideias, mais intensas do que nos seminários presenciais usuais. Estas novas oportunidades não podem ser jogadas fora. Enfim, nosso desafio é conjugar os dois mundos. E é bom lembrar que na nova situação os jovens foram especialmente danificados, assim os mais velhos temos a obrigação de cuidar do tema, ser criativos e desenvolver ideias e dar respostas. Tudo isto já parece bastante trabalho.
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